segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O prazer é um vício ( Att. Crónicas do Rochedo)

            Muni-me do meu velho dicionário e parti em busca do significado das palavras, de modo a alicerçar esta afirmação - o prazer é um vício.

"prazer, v. intr. agradar; aprazer; s. m. alegria; gosto."

"vício, s. m. tendência habitual para certo mal; defeito."

            De acordo com o dicionário, começa mal a minha demanda. Prazer é alegria ou gosto, vício é tendência habitual para certo mal ou defeito. Significaria isto, lido o dicionário "à letra", que o prazer jamais seria um vício. Ora, se há coisa que aprendi, é que o sentido das palavras não se esgota no somatório das letras que as compõem. Se me pedissem um exemplo de um prazer, diria fumar, se me pedissem um vício, diria fumar também. A esta questão poderia responder com uma infinidade de verbos, desde amar, ou odiar, ou jogar, ou correr, ou viajar, porque qualquer deles pode ser um prazer ou vício. Vejamos este exemplo: gosto de beijar o meu filhote, é um prazer, mas é também uma tendência habitual, e há quem veja nisso um defeito. Por outro lado gosto de fumar, e há quem veja nisso um vício (com razão), no entanto dá-me prazer. Se me guiasse apenas pelo dicionário, o que atrás escrevi não faria sentido, no entanto, lendo as palavras para além das letras, é evidente que os prazeres são viciantes, e os vícios podem ser prazenteiros.
            Entendo que o prazer é um vício porque há características inerentes aos prazeres que se reproduzem nos vícios, e vice-versa. Sou viciado em tabaco, mas é inegável que me dá imenso prazer desfrutar do meu cigarrinho, assim como me dá imenso prazer dar uns beijos ao meu filhote, e é inegável que o faço com a mesma frequência e necessidade com que fumo, até mais. Portanto, quando digo que o prazer é um vício, faço-o muito consciente da minha afirmação. Prazer e vício coexistem em proporções variáveis, é o nosso discernimento, a nossa racionalidade, a nossa emotividade a definir o quanto do que estamos a experienciar é prazer/vício.  Prazer e vício só se separam quando dão lugar a um comportamento desviante, e aí já não estaremos a falar nem de um, nem de outro. Nesse ponto, será caso de estudo clínico, e a raiz desse desvio estará certamente para além de prazer ou vício, e caberá a quem entenda de tais questões.
            O que o dicionário entende como factor distintivo entre prazer e vício é uma questão de aceitação social, moral - a eterna luta entre o "bom" e o "mau". O dicionário é o reflexo evidente de determinada mentalidade.  Há regras estabelecidas na sociedade que associam determinados comportamentos a valorações de ordem moral puramente subjectivas. Foram milénios de "formatação" social e intelectual que transformaram em "quase-dogmas" certos valores. A sociedade ocidental cresceu à sombra do catolicismo e das suas influências, em que o prazer era vulgarmente associado ao pecado. A evolução levou-nos a entender o prazer como algo bom, agradável, mas o vício não perdeu o cunho maléfico. Numa sociedade laica, no dealbar do 3º milénio, este tipo de valorações subjectivas tem de ser eliminado. Como sociedade laica, os conceitos em que desenvolvemos a nossa humanidade devem ser objectivos, e nunca pré-valorizados pelo legislador.
            A fórmula vigente quanto à valoração destes dois conceitos - (Vício = mau) / (Prazer = bom) - está desactualizada faz tempo. Correcto será Prazer = Vício. Saliento a afinidade gritante entre os dois conceitos, pois não há prazer que não seja um vício, nem há vício que não seja um prazer. Tudo se resume a uma questão de intensidade, de disponibilidade, porque prazer e vício são duas realidades simbióticas, simultâneas e indissociáveis. Sem valorações positivas ou negativas, de mérito ou demérito, o prazer é um vício, melhor ainda, todos os vícios são um prazer.

Imagine o dicionário com as seguintes correcções:

"prazer, v. intr. agradar; aprazer; s. m. alegria; gosto."

"vício, s. m. tendência habitual para certo acto; hábito."

            Eliminando a subjectividade e a valoração moral, os dois conceitos são absolutamente possíveis em conjunto. Depende de nós ler com olhos de ver e entender para além do que os olhos vêem.

1 comentário:

  1. Prazer é, realmente, um conceito subjectivoe não há dicionário que o consiga explicar.

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