quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O peso do ar

            O brilho incandescente do dia que nasce traz-lhe o sorriso aos lábios. A memória, ainda viva, daquele instante em que a sua nudez se misturou com outra, desenha-lhe um sorriso no rosto. Esta noite a língua percorreu um corpo macio, a pele tocou a pele, os cabelos espalharam-se, os lábios e os beijos misturaram-se com a paixão em que se envolveram, numa sinfonia de desejo e sedução. O dia nasceu. Ela acordou só, na companhia desse lugar por ocupar. Sente o travo agridoce de outra boca vivo no paladar. Sustem a respiração, com temor de incendiar as chamas que a queimam à flor da pele. O fogo incendeia a boca que cala a voz, apenas revelada na ponta dos dedos mudos, que agora tocam o vazio deixado pelo corpo ausente. A boca sucumbe. cerram-se os lábios. A voz é aprisionada nas mãos que dançam a vontade louca de sentir de novo ocupado o vazio, o querer aquelas mãos na sua pele mais do quer respirar.
            Ardem-lhe as marcas cicatrizadas de outro corpo, de outras boca, de outra língua falada e lambida na sua pele. Refastela a ânsia incontrolada de reviver a luxúria e o espanto do desejo incandescente que lhe aquece o ventre nas memórias dispersas dos momentos que partilharam. Quer outro corpo, não um qualquer, apenas aquele, o que ali deixou o seu cheiro e o seu sabor. Quer o corpo da mulher que a aqueceu por um momento breve, para a abandonar à noite e aos dias que viverá sozinha, sem ela.
            Fecha os olhos para não ver aquele lugar vazio, o corpo que não está lá, que não é suposto estar, que nunca poderia estar. Sempre o soube, desde a primeira hora em que sucumbiu à tentação. Aquele corpo não lhe pertence, é uma dádiva ocasional ao amor desmedido que lhe devota. Acompanhou-a no inicio desta noite que agora finda,, depois foi-se, demasiado cedo. Na próxima noite,  e em tantas outras depois desta, estará nos braços do homem a quem pertence, que tanto inveja.
            A lágrima esquiva-se ao cerco das pálpebras, esgueirando-se na boleia da tristeza, que não é muita nem pouca, apenas a suficiente para lhe fazer doer a alma que grita e o coração que chora. A lágrima, em queda livre, bate no chão, que treme com o peso da saudade. Agora revê-a como uma imagem apagada numa tela vazia, uma cor ausente que se desenha a cada traço pintado no vazio, quase negro, do lençol branco, onde só ela repousa, nesta agitação que a mantém acordada.
            O sorriso cai e tomba por terra, como folha perene que se desfaz sob os pés, esmagado pelo peso do ar que embala a luz e o ruído mouco das sílabas levadas na brisa da chama que clama por ser atiçada por outro ar, menos rarefeito, menos denso que este, que a esmaga. A boca já não fala nem beija, o peito que já não bate nem palpita. Resta-lhe a esperança de outro instante em que as suas bocas se voltem a unir na clandestinidade desta paixão proibida. É tudo o que deseja, tudo o que pode desejar, muito menos do que ousa sonhar.

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