segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Lições de voo - Obrigado pela (des)inspiração, Linda Martini

Falava muitas vezes com ele, algumas vezes conseguia entendê-lo, outras tantas escapava-me o sentido das suas palavras - eu era muito velho para entender a sabedoria jovem. Agora talvez comece a fazer sentido para mim - sou mais jovem que então, mas nunca serei tão jovem quanto ele.
            As histórias não as recordo pelas palavras, antes pelo sentido, pelo fio condutor que garantia a sua integridade. Revendo tudo o que me contou, reparo agora que com ele aprendi valiosas lições. Já as devia saber à muito tempo, mas a idade não perdoa, e a maturidade da velhice tolda o discernimento e o labor interrogativo das mentes jovens.
            Já quase me esqueço de onde vou. As lições de voo, é isso. Com ele aprendi que existem coisas que não nos cabe a nós entender, que não haveria qualquer interesse em fazê-lo sequer. Pertencem ao mundo dos sonhos e da imaginação, alheias às regras da natureza ou quaisquer outras. São a essência de quem somos, e contudo não nos pertencem. Pertencem sempre a outrem. E embora possamos chamá-las nossas, a verdade é que são sempre "por", ou "para", ou "com" alguém. A verdade é que existem sempre em função de entidades alheias a nós. O amor é assim, o ódio é assim, a dor é assim, são assim todos os sentimentos. Quem inventou estas "coisas" não queria que as entendêssemos, por isso fê-las incompreensíveis.
            Ele dizia-me coisas que a mim me interessavam muito, não me lembro bem de quais, talvez de todas as que conseguia entender. Ensinou-me também que essas coisas nunca vêm sós, andam de mão dada umas com as outras, aos pares, aos trios, aos quartetos, de qualquer forma, como uma orgia de emoções e razões dentro do ser humano. Formam parcerias ocasionais e aleatórias, que vão sofrendo mutações à velocidade das partidas que a vida nos prega, das experiências que vivemos e das que nos nega. E ao que parece, não se podem ter umas sem se terem as outras também. Melhor ainda, não se podem conhecer umas sem se conhecerem as outras. Ao que parece, quanto maior a dor, mais intenso o amor, quanto maior o sonho, maior a desilusão, e por aí adiante - isto custou-me muito a entender, demorei séculos, tanto que já as minhas grisalhas barbas se pintaram, aqui e ali, de negro.
            O mais importante ensinamento foi o de que, de entre todas as emoções e razões que definem a nossa humanidade, o amor é soberano, a arma mais poderosa que existe, existiu ou existirá. Armado de amor, o ser humano é capaz de feitos acima do plano divino, armado de amor o homem é supremo, o Rei dos deuses. Mas os deuses são como os demónios, não fazem sentido uns sem os outros. A divindade que o amor pressupõe é tão real como a maldade asquerosa que com ele convive dentro de nós. É tão fácil morrer de amor como matar por amor. É o argumento mais comum para o derradeiro sacrifício ou castigo.
            Agora que me aproximo da meia idade, começam a fazer sentido para mim alguns dos seus ensinamentos. Sim, admito, ensinou-me muito, e por isso estar-lhe-ei eternamente grato. Já existo à tantos tempos que este tempo é apenas mais um, mas este, agora que o conheci, talvez tenha para mim um significado maior do que todos os outros.
            As coisas que desaprendemos ao longo da nossa existência dão-lhe o cunho de inexistência. Queria ser jovem para sempre, não pela juventude física, essa é irrelevante, antes pela pureza com que a vida surge perante nós, perante os nossos olhos ainda não turvados pelas agruras dessa inexistência que se vai parasitando dentro de nós. Esse olhar cristalino é o núcleo de quem somos. Um sorriso sem barreiras, um amor sem fronteiras, a vida em todo o seu esplendor. Espero ficar ainda mais jovem para entender melhor tudo o que me ensinou. Que as coisas que sabemos são muitas das vezes demais, que menos é mais quando os olhos vêem sem protocolos nem métodos predefinidos. Ele agora é demasiado jovem, e eu não consigo ver com os seus olhos, que os meus ainda estão gastos. Ainda não sei voar, mas, graças às suas lições, hei-de lá chegar, bem alto e bem longe, onde as minhas asas me levarem.

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