terça-feira, 9 de novembro de 2010

Conto do ponto


            Ando ás voltas com as palavras sem saber o que lhes hei-de fazer. Queria escrever um conto, mas se isto fosse um conto eu não seria um ponto, nem uma palavra, nem consoante nem vogal, nem eufemismo nem outra coisa qualquer. Seria, por ventura, uma ideia vaga, descabida, como um texto fora de contexto. Se isto fosse um conto eu não seria nada, muito menos que um ponto, nem um espaço vazio sequer. Talvez uma arrelia para quem lesse, como eu também leria, arreliado. Talvez um bocejo cansado, talvez um espreguiçar irado, talvez nem isso. Não sendo nada, o que é esta ideia, este conceito, este menos que nada que agora me chateia como se fosse tanto? Por isso não gosto de letras, muito menos de palavras. Arreliam-me quando não fazem sentido, sobretudo por não ser capaz de as parar. E, por muito que tente, não lhes consigo nem dar, nem achar sentido. Fogem de mim em alta velocidade, não as consigo travar - tragédia! E agora? O que faço, se elas não se calam? Parece que a caneta se colou aos dedos e não mais os liberta. Os dedos doem-me, a tinta não acaba. Já visitei trinta e sete médicos e curandeiros de diversas especialidades - apenas nos meus sonhos - e nenhum reconhece estes sintomas. "Não escreva" - sonho as suas palavras. Isso é fácil de dizer, porque se não escrever fico sem ar e morro asfixiado. Nem um ponto, nem uma vírgula num conto. A prosa, é esse o problema, nunca deviam ter inventado a prosa. Não sabiam certamente que era doentia ao ponto de se entranhar nos ossos como uma coisa ruim. Agora acabo o conto do ponto vazio que não é nada, muito menos que um espaço em branco. Acabo-o sem o começar, porque nunca soube por onde lhe pegar.

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