O dia raiou claro. O sol bate forte nos estores sujos, penetrando pelas suas imperfeições como punhais que a cegam. Por vezes os dias nascem como uma imagem apagada numa tela vazia, como uma cor ausente que se desenha a cada rasgo de luz. O tom fosco da ausência da escuridão que se foi, levada pela claridade da aurora, recorda-lhe o porquê de, desde à uns tempos a esta parte, odiar todas as manhãs, todos os dias. Sabe perfeitamente porque se sente assim, sem brilho nem cor. Sabe-o bem demais.
Olha para ele e deixa os lábios deslizarem pelo corpo áspero e cansado a seu lado. Fá-lo porque sim. É um hábito adquirido. Demora-se nessa carícia como se isso pudesse mudar alguma coisa. Tem consciência da falsa esperança que nasce no seu peito todas as manhãs. É apenas uma pequena ilusão a que se entrega com a monotonia de uma rotina. Não sente nada, acomodou-se à sua presença e não procura outra. Não quer mais lágrimas nem desilusões.
O toque húmido da carne na pele enjoa-o. Levanta-se e abre a janela. Está frio lá fora. Talvez não tanto como entre os lençóis. Está ali com ela mas não queria estar. Também, não tem para onde ir. E se tivesse, e se fosse? Seria bom o começo, a paixão nova vivida intensamente. E depois? O avolumar do tempo, dos meses, dos anos, como seria? Está aqui e não pondera abandonar a promessa que fez à demasiado tempo. Mas sabe que isto não lhe chega, nem a paixão inexistente nem a coragem para se desfazer deste grilhão. Ela sabe tão bem como ele. Está tão gasta como ele.
Olham um para o outro enquanto se vestem. Não trocam qualquer palavra. Sentam-se à mesa e comem qualquer coisa à pressa. Não há nenhuma urgência para nada. Apressa-os o desejo de saírem de casa e cada um seguir o seu rumo, longe um do outro. O silêncio da despedida corta como uma faca. Sentem-no mas não gritam essa dor.
Há muito, muito tempo atrás acreditaram no amor. Hoje não querem acreditar, o amor dói demasiado. É volátil e efémero. Não o sabiam até o saberem. Nenhum deles sabe quando foi que o amor desapareceu. Sabem que um dia acordaram e ele já lá não estava. Não precisam de o dizer um ao outro, é algo que ambos sentem no gelo das palavras que não dizem, do olhar que não trocam.
Enquanto vagueia em direcção à baixa, lembra-se da despedida desta manhã. Ama-o como no primeiro dia, tem a certeza. Mas porque é que ele lhe é indiferente, porque é que só pensa as palavras e os gestos que devia partilhar com ele? Porque é que só o ama quando está longe dele? Lembra-se de como o conheceu, do primeiro beijo, da primeira noite que passaram juntos, da jura que lhe fez de o amar para sempre. Ele era romântico, oferecia-lhe flores, dizia-lhe lindas palavras ao ouvido. Adorava dançar com ele, sentir o seu peito forte, o seu sorriso encantador. Não se recorda quando foi que ele perdeu esse sorriso, não se recorda da última vez que lhe ofereceu uma flor. Tem saudades dele, tantas saudades. Enquanto pensa nele lembra-se de si própria. Também mudou, talvez demasiado. Precisa recordar-se de quem é, de porque é que se apaixonou por ele. Ainda o ama, tem de lhe dizer que o ama.
Os olhos humedecem. Sente ainda na pele os seus lábios. Porque é que essa caricia o enjoa? Ele que se apaixonou precisamente pelos seus lábios, ele que ama a sua boca acima de tudo? Não entende. Sabe que quando está perto dela se enfada, ao ponto de já nem os beijos o aquecerem. Junto a ela sente o desespero da sua ausência, da ausência da mulher por quem se enamorou. Sabe que longe dela, o pouco sentido que a vida tem desvanece. Não pensa separar-se dela, isso nunca, mas viver assim cansa. Não gosta da vida que tem, por isso anda triste e deprimido. Queria que ela fosse a menina alegre que ele conheceu, extrovertida e sorridente, terna e apaixonada. Mas ela mudou tanto que a sente demasiado distante, demasiado fria, já não a reconhece sequer. Ama-a profundamente, mas ela está tão diferente... O tempo passou muito depressa, e ela mudou sem que ele se apercebesse, até ao dia em que essa mudança o apunhalou no peito. Agora deprime-o vê-la e não a ver. Ama-a ainda, mas está revoltado, não queria que ela tivesse mudado.
Talvez seja assim mesmo, talvez o amor envelheça com eles, talvez mais depressa que eles, que ainda são jovens. Talvez o amor não seja mais que uma ilusão construída pelos nossos olhos para nos fazer viver. Pensa nisso muitas vezes, talvez o amor seja uma ilusão. Talvez ambos errem ao olharem para os erros do outro, talvez o erro sejam eles próprios, talvez não tenha sido só ela a mudar... Talvez também ele se tenha esquecido de amar. Talvez ele seja a própria razão de se sentir assim. Já não luta por ela, já não fecha os olhos aos seus pequenos defeitos, já não se encanta com o seu jeito. Sim, foi ele que perdeu o querer, é a ele que a vontade falta.
Entra em casa, ela está na cozinha. Vai ter com ela, dá-lhe um beijo e oferece-lhe uma flor que roubou no canteiro da vizinha. Os seus olhos brilham ao olhar para ela e rever um olhar que já tinha esquecido. Ela pendura-se no seu pescoço.
- Amo-te tanto, meu amor.
Fecha os olhos e aperta-a com força. Beija os seus lábios que tanto adora.
- És a minha vida, amo-te como no primeiro dia.
As lágrimas soltam-se, não de tristeza, de alegria, de amor. Nada está perdido, basta que se amem, que não se esqueçam de se amar, que não se esqueçam que se amam.
Sem comentários:
Enviar um comentário