segunda-feira, 7 de março de 2011

Licenciados fantoche

Pois é, anda por aí uma acesa discussão sobre os licenciados desempregados. Eu, como não licenciado empregado, acho-me no direito de fazer algumas considerações e reparos sobre opiniões e ideias que acho trágico-cómicas. A quem se dignar a ler o post, por favor faça-o até ao fim, e só depois retire as ilações que achar adequadas, é que tenho uma certa tendência para a rudeza, a chamar os bois pelos nomes, o que poderá criar ideias erróneas se a leitura ficar a meio.

As palavras são armas poderosas, tanto nos defendem como nos atacam, e para usá-las é necessária alguma reflexão, sobretudo quando se trata de questões de índole social. O que os jornais têm veiculado sobre este tema está a criar uma onda de cegueira. Em consciência, não posso calar a minha voz contra esta abordagem, para a forma como a "piedade" pelos licenciados desempregados poderá criar uma nova clivagem social, para a forma como a difusão desta realidade está a desenvolver ideias de supremacia e segregação que já deviam ter sido erradicadas. Mais apreensivo fico quando vejo que são os próprios licenciados que se vêem a si próprios como superiores, que olham para uma oferta de emprego e a analisam em função de ser digna ou não do seu estatuto. Cuidado, muito cuidado.

Ouve-se dizer, lê-se, que há uns 60 mil licenciados desempregados. Que investiram 5 anos da sua vida em formação para não conseguirem emprego, depois de tanto esforço e dedicação. Fala-se muito na "indignidade" que é para um economista, um jornalista, um psicólogo, um historiador, terem de trabalhar em empregos "desprestigiantes" para sobreviverem. Diz-se ainda, com comoção nas palavras, que é triste ver um país com uma das menores taxas de licenciados da Europa, ter um tão elevado número de licenciados desempregados. E os relatos comoventes de quem se chora por não ter o emprego com que sonhou, de não ter a vida com que sonhou, pela qual tanto se esforçou, sucedem-se em noticiários e blogues e outros que tais.
Este tipo de argumentos serve apenas para justificar opções políticas desajustadas da realidade e opções pessoais erradas. Apenas corroboram o que se tem visto nos últimos anos: uma sociedade lusitana baseada no estatuto pessoal, na pompa, na gabarolice, no show off, em que é mais importante um curso que um emprego, em que os trabalhos que constituem a base da economia e da sociedade são vistos como uma doença.
Então é indigno dar serventia a pedreiro? É indigno ser serralheiro? É indigno ser caixa de supermercado? São indignas todas as profissões que não pressuponham uma licenciatura? O trabalho é indigno? Então quem não tem uma licenciatura (por não querer, por não poder, por outro motivo qualquer,) é "inferior", credor de menor dignidade? Ou será que o canudo confere a alguém dignidade? Ou será que devemos enveredar por uma sociedade segregacionista? Ou será que todos os Homens não são iguais, independentemente da raça, da ascendência, da cor, do credo?
Não, indigno é ficar refastelado no sofá a carpir as próprias mágoas, com pena de si próprio, e não ter a dignidade suficiente para trabalhar. Indigno é ficar meses, anos a fio a viver do fundo de desemprego, da caridade do Estado, por se acharem superiores em função do "canudo". Indigno é fazerem tudo isto sem terem a noção que a sua opção tem custos tanto no plano social como económico, e que o rendimento miserável que o estado lhes proporciona é sustentado por quem faz o trabalho que eles catalogam de "desadequado" para as suas competências. 

Esta atitude e postura, este conceito que vem tomando forma na nossa sociedade mete-me medo. Faz-me lembrar certas teorias de supremacia segregacionista que conduziram a desfechos catastróficos para a humanidade. Para os mais incautos, recordo-lhes um certo senhor que defendia uma raça "superior", talvez queiram ler o seu "Mein Kampf", porque conhecer os horrores da mente humana alheia pode revelar os nossos próprios horrores. Mas adiante...

Para entender este fenómeno dos licenciados fantoche  há que questionar o porquê desta situação, e para isso é necessário formular uma série de questões, algumas das quais só podem ser respondidas a nível pessoal, outras são verdades de la Palisse:


- Porquê criar licenciaturas sem procura no mercado?
Porque é fundamental apresentar números à Europa, é fundamental passar a imagem que somos tão bons quanto os demais parceiros europeus, é fundamental mascarar a realidade. Porque, digo-o com mágoa, faz parte da nossa natureza lusitana a ostentação do que não se tem, a mentira "civilizada". Sim, porque é verdade que o número de licenciados tem subido de ano para ano. Mas é mentira que esse aumento de quadros superiores tenha trazido qualquer mais-valia para o país. A realidade comprova esta afirmação, ou alguém duvida?

- Porquê formar-se numa área sem saída profissional?
Porque mais importante do que ter um contributo activo na sociedade, é poder ostentar orgulhosamente o título de Engenheiro, ou Doutor, ou outro qualquer. Porque desde pequenos somos ensinados a tratar os licenciados com subserviência - é a nossa tradição - e todos anseiam pelo canudo para o poderem ostentar em sociedade, mesmo que para isso tenham de passar fome e viver do fundo de desemprego, da contribuição de quem trabalha desde os 16, 17, 18 anos, de quem não frequentou nem a universidade nem a tuna, de quem já trabalha e desconta à anos em prol do país, e tem de se contentar com ordenados miseráveis, porque não tem canudo, mesmo que seja o melhor ladrilhador do país, mesmo que seja o técnico mais capaz na sua área. E as instituições são igualmente culpadas desta parolice que nos afecta a todos. Faz algum sentido os cartões de crédito, os cheques, e outros que tais, trazerem, antes do nome, a "cagarolice" Dr. Tal, Engenheiro Tal? Então porque não põem lá também Pedreiro Tal, Serralheiro Tal? Ou será que devemos aprovar uma lei que obrigue os licenciados a terem o título antes do nome no Cartão de Cidadão? Pois é, tanta importância faz lembrar um regime feudal. Em tempos idos o povo curvava-se perante os Senhores, os Barões, os Duques. Hoje são os "Doutores" que fazem com a sociedade ignorante se curve perante eles sem razão nem justificação, e este servilismo cego leva a que alguns licenciados se achem, de facto, superiores. Não que o sejam, apenas porque ainda há quem se vergue perante um título, apenas porque uma licenciatura não é equivalente a cultura.


- Porquê abrir 1000 vagas quando o mercado só tem capacidade para absorver 100?
Porque o que conta é a estatística, não a realidade. Há uma preocupação imensa em apresentar números de desenvolvimento social, sem que se procure entender quais são os números realmente necessários. Se precisamos de médicos, porquê formar animadores? Porque é mais fácil e rápido, mas não só...

- Porquê  abrir 100 vagas em cursos que o mercado "pede" 1000?
Porque o ecletismo de certas profissões exige que o número de praticantes não ultrapasse determinado valor, para que a procura seja superior à oferta e assim se possam auferir ordenados pornográficos. Quem usar o argumento das médias do ensino secundário para rebater este argumento deve fazer uma reflexão profunda sobre o que é o ensino secundário, e talvez deva analisar outros sistemas de ensino, bem melhor estruturados e orientados que o nosso. Sobrepõe-se, novamente, a ilusão à prática. O corporativismo de cúpula regula a sociedade e impõe "limites" para garantir o seu próprio bem estar. Há uma cultura de ecletismo em sectores chave do conhecimento que estão blindados simplesmente porque são, por si próprios, sinónimos de estatuto e poder.

Ser pedreiro, mecânico ou físico são profissões com a mesma relevância, com a mesma dignidade, e não é em função da profissão que se hão-de diferenciar os Homens. Quem estuda e quer prosseguir para a licenciatura deve ser orientado, dentro da sua própria aptidão pessoal, para uma formação que seja útil à nação. As licenciaturas devem ter o exacto número de vagas necessárias no mercado, nem mais, nem menos. O tempo e dinheiro que perdemos a formar licenciados inúteis é espezinhar quem trabalha e pouco recebe, é achincalhar todos os que vêem subtraído ao seu mísero ordenado mais uma parcela de impostos sem propósito, quando esse dinheiro muitas das vezes fazia falta para comer. 
A mentalidade tem de mudar, é necessário entender o conceito de igualdade, é necessário erradicar a cultura da subserviência, o corporativismo ecléctico, as teorias de supremacia. É necessário entender a sociedade como um todo, é necessário entender que todos fazemos falta, que todos somos importantes, que todos somos dignos, que todas as profissões são honrosas. Porque se é verdade que sem o médico as doenças proliferariam, não é menos verdade que sem as batatas e as cenouras que os agricultores cultivam o médico morreria à fome.

Aos licenciados desempregados que se acham demasiado bons para determinados trabalhos, deixo aqui alguns conselhos.
Agarrem-se à vida, lutem, sobrevivam. Trabalhar dignifica, trabalhar é o remédio para curar a arrogância. Depois de cinco anos a estudar não quer estar numa caixa de supermercado a ganhar o ordenado mínimo? Pois é, quem lá trabalha também preferia estar sentado num gabinete, com ar condicionado e internet, e ganhar uns milhares de €, mas não é por isso que deixa de trabalhar, e provavelmente já o faz à cinco anos ou mais, há quem o faça a vida inteira para lhe pagar os estudos e o fundo de desemprego, sem nunca ganhar mais que ordenado mínimo. São menos dignas que você, essas pessoas? Merecem menos? Quer ser útil, quer evoluir como Homem, quer ser alguém? Pare de choramingar e faça-se à vida, ninguém sabe o que o futuro lhe reserva, e quem sabe se a experiência profissional atrás da caixa de supermercado não lhe trará dividendos no futuro. Incomoda-o ser engenheiro e trabalhar como canalizador? Incomoda-me muito mais a mim que isso o incomode a si, e imagino que os seus colegas de trabalho olhem para si como os judeus olharam para Hitler, ou guarda para si essa revolta de se achar melhor do que eles, essa mesquinhez, essa cobardia? Ou prefere viver em casa dos "papás" para poder sair à noite e ir ao café discursar sobre as dificuldades que enfrenta e o baixo ordenado que tem, que é tão injusto? Injusto é esquecer-se que você não é o único a sentir-se injustiçado, injusto é o seu "umbiguismo" quando não vê para além de si próprio. Mas você até nem é culpado, você é apenas o fruto de uma sociedade perdida, sem rumo, sem juízo, sem valores, sem moral.


Há muitas excepções, sei-o bem, mas a excepção devia ser a regra e não é. Basta entrar num repartição pública, numa empresa privada, para ver esta realidade estampada em quem lá trabalha, nos licenciados obtusos e nos operários subservientes. Basta entrar num restaurante ou num café para ver a arrogância de uns e o servilismo de outros. E o mais grave é que quem não se verga a este feudalismo é tido como "reaccionário", "ignorante", "marginal". São engraçadas estas coisas da vida...

Enquanto este estado de coisas não se alterar, só me resta perguntar: Para onde vamos nós, para onde vai Portugal?

1 comentário:

  1. Nao li tudo. Sou licenciado e arranjei trabalho na boa (talvez por ter tirado o curso na melhor faculdade do país na área em que insiro - economia - e sim, universidade publica)

    Apesar de ter só ter lido uma parte, creio que tens razão em alguns pontos, como p.e., a questão dos estatutos e da mania do pessoal achar que nao tem de fazer coisas "mais baixas" só porque tem um curso (uso "mais baixas" num sentido figurativo. Eu prório já limpei muito chão e pratos.

    No entanto falhas em alguns pontos. A questão da licenciatura não é o trabalho que vamos ter a seguir. É errado e medíocre pensar assim. Qualquer faculdade (principalmente as privadas) têm o direito de oferecer o curso que lhes der na gana. Não têm cá de estar a pensar se há trabalho ou não. Isso é o dever de quem vai tirar o tal determinado curso. Mesmo assim, o curso não serve só para trabalhar, serve para aprender outras coisas e educar-nos (muitos gajos tiram cursos de medicina e vão trabalhar como consultores financeiros... etc etc etc).

    Mais, não é só o trabalho que move a sociedade... são as ideias, a originalidade, leis propícias ao desenvolvimento... e isso tá muito relacionado com o nível de educação. Acredita, um pedreiro que perceba de economia vai contribuir muito melhor para o país do que se não tivesse estudado nada. Por exemplo, pode aprender coisas que lhe permitiram fazer o trabalho de forma mais eficiente e lucrativa. Ou poderá também perceber o que está mal no país e assim ter um melhor sentido de voto... em vez de votar em muitos bananas que andam praí, como muitas vezes acontece... veja se o exemplo do socrates

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