sábado, 26 de março de 2011

Figuras de estilo


- Só podes ser bipolar, só assim se pode entender essa mudança de atitude...
Esta frase, em lugar de a deixar furiosa, fê-la sorrir. Encostou-se à parede e sorriu com desdém.
Ele não sorriu, mas achou piada. Gostou do seu douto sorriso quando aludiu à sua "bipolaridade", gostou da sua reacção soberba. Imaginou de imediato a mente dela, asilada na sua sabedoria laica, analisando tácticas e estratagemas para lhe chamar ignorante, de forma subtil, não fosse ele entender o seu propósito. Manteve-se encostada, mas não disse nada que revelasse o que queria de facto dizer. Deixou apenas um sorriso, quase macabro, a gelar o ar.
Ele ouviu as palavras que ela não proferiu. Olhou-a nos olhos e teve dificuldade em reconhecê-la. Os mesmos olhos, a mesma boca, a mesma voz e cabelo. Tudo indicava que era ela. Mas não podia ser. Aquele ser que estava perante ele, usurpando aquele corpo, era divino. Só podia ser. Não há outra explicação para tal atitude.
Não se conteve, e uma certa vontade de a melindrar apoderou-se dele. Ainda bem que ela não lhe chamou ignorante, não fosse ele cair na tentação de se ajoelhar a seus pés, deslumbrado pela sua omnisciência. Esta ironia carregada de cinismo, esta hipocrisia que grassava no seu íntimo, acabaram por não ser disparadas contra aquela Senhora Dona Madame Doutora Licenciada Psicóloga e mais o raio que a parta. Guardou para si o conselho que tinha para lhe dar: estude as figuras de estilo, aprenda a sua própria língua materna, não vá cometer erros maiores que outros já cometidos, sem remédio.
Gostava de lhe explicar a metonímia, talvez a diasirme, mas para quê? Haverá algo para ensinar a quem se julga omnisciente? Ao recapitular o seu discurso, interroga-se se não teria sido preferível usar o asteísmo, porque não é com vinagre que se apanham moscas, e talvez a doçura nas palavras disfarçasse a ironia com que as desejava impregnar.
No seu íntimo, achou por bem explicar-lhe o sentido em que tinha utilizado o termo "bipolar", mas sabe bem que de nada serviria - o maior cego é aquele que mão quer ver, e ela está cega há muito. Queria dizer-lhe, já que parece tanto gostar das palavras, que lhe falta aprender a ouvi-las e entendê-las. Saber muitas palavras e usá-las a preceito não significa que saiba o que diz ou ouve. Mas quem, de entre os mortais, será capaz de lhe fazer entender tal realidade?
Não sorri, como ela. Mantém o semblante carregado. Está triste. Finalmente entendeu o porquê de não se entenderem. Não falam a mesma língua, expressam-se em tons distintos. É impossível o diálogo ou o entendimento. Resta a memória do que nunca chegou a ser. E uma certa tristeza, por ver que a idade, afinal, parece nem sempre trazer a maturidade. Por vezes, o decurso do tempo cega mais do que ilumina, e quanto menor o brilho, maior a necessidade de escuridão.
Um sentimento terrível invade-o: sente pena dela. Sabe que é terrível sentir assim, mas teme que ela esteja perdida para sempre. Ela, que já fez constelações apagarem-se, é hoje uma sobra improvável de si própria, uma metodista inanimada na singularidade da sua laicidade. Odeia esse sentimento de compaixão. Odeia esse sentimento, e a ela também, por o obrigar a senti-lo. E odeia as palavras, cada vez mais.
Ao que parece, o Português é demasiado complexo, e é cada vez mais difícil encontrar um interlocutor que entenda para além das simples palavras, alguém que entenda toda a estrutura gramatical que as tornam sublimes. Um dia destes faz um voto de silêncio, e nunca mais a sua voz se ouvirá, pelo menos assim não corre o risco de ser mal entendido.

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