É só mais um domingo como tantos outros. Recebeu o ordenado na sexta, hoje vai começar a gastá-lo. Passeia-se pelos corredores do supermercado, guiando o carrinho que vai atulhando com bens de primeira necessidade e algumas extravagâncias. Não está atento a nada, excepto à lista que leva na mão, e ao orçamento que não pode exceder. As pessoas passam por ele como vultos que mal reconhece como pessoas. São obstáculos que, ocasionalmente, tem de contornar. Ignora-as. Está chover torrencialmente lá fora, o frio corta a pele. Aqui está confortável, não fosse o incómodo da roupa molhada. Procura uma garrafa de vinho para acompanhar o jantar que vai saborear sozinho. Observa as garrafas, indeciso sobre qual deverá escolher. Pelo canto do olho vislumbra algo que chama a sua atenção. Não sabe porquê, mas desvia o olhar para o expositor em frente.
De costas para ele, uma figura feminina preenche todo o espaço que a sua visão alcança, como se lhe inundasse o olhar e mais não pudesse ver. Um saia curta, de ganga, um casaco de inverno com um grande capuz e umas botas de meio cano, pretas, sem salto, vestem a mulher em frente a si. Os cabelos negros, ondulados, compridos, espalham-se sobre o casaco. Distrai-se a olhar para ela, perde-se a imaginar o seu rosto. Não se mexe. Tem as duas mãos presas na pega do carrinho, o olhar parado nos movimentos daquela mulher, que acompanha hipnotizado. Alguém passa por ele, o ruído metálico do choque entre os carrinhos obriga-o a desviar-se. Uma figura carrancuda olha-o com ar de reprovação por estar a impedir o tráfego. Quando volta a procurar por ela, já não está lá. Aquele breve instante afastou-a dos seus olhos.
Segue o seu caminho, em passo lento. Aos poucos vai acelerando o passo, quase sem dar por isso, inconsciente do motivo porque o faz. Caminha cada vez mais rápido, à medida que sente a necessidade de a ver a crescer dentro de si. Não sabe o porquê, mas sente que tem de a procurar, como se a sua vida dependesse disso. Deixa cair a lista, nem se importa mais com as compras. Percorre os corredores num frenesim, em busca daquela saia curta, daqueles cabelos ondulantes. "Onde estás?" pergunta-se. Não a encontra. Fica muito mais do que tinha planeado, procura-a incessantemente. Interroga-se porque o faz, não encontra resposta, sente que tem de o fazer, nada mais. Por fim desiste.
Dirige-se à caixa mais próxima com um sentimento de culpa a invadi-lo. Sente-se como um criminoso, como se não voltar a vê-la fosse culpa sua. Como foi possível que tivesse desaparecido num repente? Bastou um segundo de distracção para que desaparecesse. Não queria que partisse sem olhar para ela, nos olhos. Não queria imaginar o seu rosto, queria vê-lo. Olha em redor. Não a vê. Tem fé que ainda a possa encontrar. Sai da fila e retorna ao labirinto de prateleiras. Não vai desistir ainda. Caminha durante largos minutos, até que, já com as pernas cansadas, assume o fracasso e volta à fila.
Perdeu-a, é o único pensamento que agora lhe ocorre. O seu olhar enterra-se no chão sujo sob os seus pés. Quase sente pena de si próprio, tal a tristeza que sente. Perde-se nesse sentimento, até que alguém o chama à atenção - está a empatar a fila. Põe as compras sobre o tapete rolante e aguarda pela sua vez.
Na monotonia da espera vai olhando para aqui e para ali, já sem esperança. Quando chegar a casa vai pôr a pizza no forno, beber um ou dois copos de vinho, e enterrar-se no sofá até o sono o vencer. Vai pensar nela, vai imaginá-la.
Está perdido nos seus pensamentos quando olha para a frente e a vê. Os seus olhares cruzam-se, o seu ritmo cardíaco dispara. Larga tudo e vai atrás dela. Não corre, mas queria correr. À medida que se aproxima dela, toma consciência da loucura que está a fazer. Não quer saber. Não a conhece, não sabe o que lhe quer dizer, não sabe porque quer aproximar-se dela. Sabe, sente apenas que não pode deixar de o fazer. Detém-se finalmente em frente a ela. Ofega, o seu peito palpita e os olhos brilham. É muito mais bonita do que poderia imaginar.
- Encontrei-te.
- Desculpa? - diz ela, surpreendida.
- Andava à tua procura.
- À minha procura? Deves estar a fazer confusão.
- Não, não estou. Era de ti que eu andava à procura.
- Não me parece, eu não te conheço...
- Sei que não me conheces, mas eu conheço-te.
- Não estou a perceber nada do que estás a dizer...
Nem ele percebe o que está a dizer. Tem de fazer alguma coisa para quebrar o incómodo da situação que ele próprio criou.
- Posso oferecer-te um café?
- Olha, não sei o que pretendes com esta conversa, mas estás a assustar-me.
- Não é essa a minha intenção...
Não o deixa acabar a frase, vira-lhe as costas e afasta-se dele. Segue-a.
- Não vás, só te quero dizer...
- O que é que me queres dizer? - interrompe-o, visivelmente irritada.
- Que me apaixonei por ti, assim que olhei para ti. - diz-lhe ele com o coração a tremer na voz.
A sua expressão muda. Está a olhar para ele, atónita com o que ouve da sua boca. Não lhe quer responder, mas o olhar dele, de alguma forma, perturba-a. Não sabe o que há-de fazer. Quer ir embora, mas aqueles olhos têm qualquer coisa no seu brilho. Ao olhar para eles, toma consciência que ele está a sentir o que diz. De alguma forma isso mexe com ela. Ele continua estático, em frente a ela, envergonhado com a figura que está a fazer, com a forma como a abordou, mas também satisfeito por ter tido a coragem de o fazer.
- Não sei o que me deu para vir falar contigo, sem mais nem menos, mas tinha de o fazer. Deves pensar que sou louco...
O silêncio dela deixa-o triste, sabe que não devia tê-la interpelado assim, mas não foi capaz de controlar o impulso que o guiou até ela.
- Perdoa a minha falta de jeito, não te incomodo mais, só te queria dizer isso.
Vira-se e começa a caminhar, lentamente, em direcção às compras que deixou já nem sabe em que caixa. Enquanto caminha, pensa nas mil formas de a abordar, e de como ele escolheu a pior de todas. Sente-se terrivelmente mal consigo próprio - age sempre da forma errada quando não pode falhar.
- Espera, - ouve a sua voz - não me disseste o teu nome.
Está a olhar para ele, à espera de uma resposta. Os olhos dela fazem-no esquecer-se do seu próprio nome, esquecer-se de onde está., esquecer-se de tudo, excepto daquele momento em que a viu de costas, e soube que ela era dele.
- João, é o meu nome.
- Eu sou Maria. Afinal apetece-me o tal café.
Está surpreso, não esperava isto. A tristeza dá lugar à alegria que agora controla, para que não se transforme em euforia e deite tudo a perder, novamente. Seguem lado a lado. Conta-lhe que a viu e que a procurou insistentemente, até desistir, convencido que já não a encontraria. Aos poucos o silêncio enferrujado dá lugar às palavras soltas. Sorri e fá-la sorrir. Sentam-se numa mesa e vão ficando, até ser demasiado tarde. Conversam sobre muitas coisas que pouco importam, até já não restar mais sobre que falar, para além da forma como os seus olhos se cruzam.
- Adeus. - diz-lhe ela, enquanto se levanta.
- Vou voltar a ver-te?
- Domingo que vem, no mesmo sitio, à mesma hora.
Vai-se embora, deixando-o ficar com a conta para pagar, um sorriso nos lábios e a esperança de a voltar a ver. Domingo que vem estará aqui, sentado nesta mesma mesa, a tarde toda. Não sabe se ela virá, mas sabe que estará cá, à sua espera, até que ela chegue, ou que o mandem embora para fechar as portas.
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